Contabilizando Reflexos da Covid-19 (parte III): Identificação e Modificação de Contratos – Pronunciamento Técnico CPC 47

Por Mateus Alexandre Costa dos Santos

 

Criado em 03/06/2020

Publicado em 08/06/2020

Acompanhe o Boletim:

 
Encerrando a série de 3 artigos que tratam da contabilização de alguns dos reflexos da crise da pandemia da covid-19 sobre a posição patrimonial e financeira, bem como sobre o desempenho das entidades, consequentemente, sobre as expectativas quantos aos seus fluxos de caixa futuros, apresentamos, neste último artigo, alguns aspectos relacionados à identificação e à modificação de contratos, à luz do que prescreve o Pronunciamento Técnico CPC 47 – Receita de Contrato com Cliente (CPC 47).
 

A temática ora discutida revela-se fundamental, diante de um cenário marcado pela retração econômica e por inúmeras mudanças nas mais diversas relações comerciais. Cancelamento de contratos, modificações nos termos previamente acordados, mudanças nas condições dos clientes, dentre outros impactos, têm ocorrido nos mais diversos segmentos, a exemplo do turismo, ensino e entretenimento, impondo enormes desafios para a gestão das entidades afetadas, em especial para as pequenas e médias,  e, consequentemente, para a contabilidade, pois esta, em meio às inúmeras incertezas existentes, deve  gerar informações capazes de auxiliar na superação desses desafios.

Identificação e Modificação de Contratos de Venda

As receitas devem ser contabilizadas observando tanto os critérios jurídico-tributários quanto aqueles prescritos pelo CPC 47. Isso pode até parecer estranho para boa parte dos profissionais de contabilidade, mas, o fato é que a tão conhecida receita bruta é diferente da receita contábil, definida no âmbito das normas contábeis atualmente vigentes.

A receita bruta deverá observar critérios jurídicos-tributários, desse modo, ocorrendo o negócio, a transação, a operação, ela, a receita bruta, deverá ser reconhecida e mensurada considerando os contornos jurídicos que lhe sejam próprios. Para fins exclusivamente contábeis, o CPC 47 prescreve que a receita deve ser reconhecida de maneira que seja possível descrever adequadamente a transferência do controle dos bens e serviços para o cliente (o que pode não coincidir com a transferência da propriedade) e mensurada de modo a refletir a contraprestação que a entidade espera receber (o que pode ser diferente do valor constante na nota fiscal, p.ex.), o que requer o exercício de um julgamento criterioso.

Na escrituração comercial, os contadores deverão registrar a receita bruta, em observância ao inciso I do art. 187 da Lei nº 6.404, de 1976 (Lei das S.A.), ao art. 12 do Decreto-Lei nº 1.598, de 1977, bem como ao disposto no parágrafo 112-A do CPC 47. Eventuais divergências entre a receita bruta e a receita contábil (receita líquida) deverão ser registradas como um ajuste, à crédito ou à débito, conforme o caso, a fim de permitir a coexistência desses números na escrituração comercial e evitar possíveis interferências nas demonstrações contábeis, sobretudo, na Demonstração do Resultado do Exercício.

Pois bem, feitas essas observações iniciais, e que serão melhor explicitadas nos exemplos, passemos a tratar da aplicação do CPC 47. O primeiro aspecto de interesse refere-se à identificação do contrato. De acordo com o item 9 desse pronunciamento, a contabilização dos efeitos de um contrato com um cliente somente deverá ocorrer se todos os critérios ali estabelecidos forem atendidos. Dentre eles, o contido na alínea “e” merece nossa atenção, pois, ele estabelece que tal contabilização só deverá ocorrer “quando for provável que a entidade receberá a contraprestação à qual terá direito em troca dos bens ou serviços”. Perceba que, em meio à crise da covid-19, em muitos casos, infelizmente, tal critério poderá não ser atendido.

O item 9 ainda prescreve que a avaliação acerca da ocorrência dessa situação deve considerar, exclusivamente, a capacidade e a intenção do cliente de realizar o pagamento da contraprestação. Como se vê, não se trata, necessariamente, de um julgamento contábil, mas sim, quanto ao risco do cliente. Portanto, caberá à empresa analisar cada operação de venda, a fim de definir o grau desse risco.

Outrossim, nessa avaliação, é possível que a empresa concorde em reduzir o preço firmado originalmente na transação. Neste caso, essa concessão será tratada como uma contraprestação variável[1]. Como exemplo, imagine a situação em que a empresa conceda um abatimento para evitar o cancelamento da venda ou de um contrato de prestação de serviços.

Observe que não estamos tratando do reconhecimento das perdas de recebíveis, tal qual discutimos no nosso artigo anterior (parte II), mas sim, do próprio reconhecimento da receita. Perceba, neste caso, sequer haverá o reconhecimento do recebível. Se a venda (de bens ou serviços) não atender aos requisitos exigidos no item 9, a receita não será reconhecida ou poderá ser por um valor inferior ao constante na nota fiscal ou no contrato, por exemplo. Esse é o ponto!

Bem, na hipótese em que o contrato não tenha atendido esses requisitos, a empresa deverá continuar realizando a avaliação para verificar se esses requisitos serão atendidos posteriormente. Outrossim, havendo qualquer recebimento, ele deverá ser reconhecido como um passivo, o qual, de acordo com o item 16 do CPC 47, representará “a obrigação de transferir os bens ou serviços para o cliente no futuro ou de restituir a contraprestação recebida do cliente”. Lembra da contabilização dos adiantamentos de clientes? Então! É muito semelhante!

Tal passivo somente será reconhecido como receita se (item 15):

  • A empresa não possuir obrigações remanescente relativamente à transferência de bens ou serviços ao cliente, e a respectiva contraprestação tiver sido recebida, total ou praticamente em sua totalidade; ou
  • O contrato for rescindido. Vale ressaltar que, em ambas as situações, é necessário que a contraprestação recebida não seja restituível, isto é, que a contraprestação pertença à empresa e, portanto, deva ser incorporada ao seu patrimônio.

Vale destacar que, em princípio, se a venda atendeu aos requisitos do item 9 no início do contrato, não é necessário reavaliar essa situação, exceto se sobrevier uma mudança significativa nas condições consideradas na análise inicial. O fato é que, para muitas operações, é o que justamente está ocorrendo com os impactos econômicos da crise da pandemia da covid-19.

Nestes casos, é necessário que o contador avalie, juntamente com a direção e demais colaboradores da empresa, cada contrato em curso. É bem verdade que, para uma grande parcela das operações de venda de bens, o impacto a ser reconhecido será a perda estimada associada ao recebível, conforme vimos no nosso artigo anterior (parte II), mas, para contratos continuados de fornecimento de bens ou de prestação de serviços, é possível que, a partir do ponto em que se verifique a mudança nas condições do cliente, nenhuma receita seja reconhecida e que eventuais recebimentos tenham que ser reconhecidos como passivo, em um primeiro momento.

Outros reflexos decorrentes da crise da covid-19 também poderão ser vistos nos cancelamentos ou modificações de contratos. Tais reflexos já são sentidos em alguns segmentos, como os de shows, festas, turismo, academias de ginástica, escolas, faculdades, cursos etc. Havendo cancelamentos, deve-se avaliar os termos contratuais e legais quanto à devolução de valores eventualmente recebidos. O que, em princípio, não exige um grande esforço para reconhecer e mensurar os respectivos efeitos contábeis. Contudo, a modificação de contratos requer uma maior atenção, pois, há critérios específicos previstos no CPC 47 para a contabilização dos seus efeitos.Vejamos.

Conforme o item 18 desse pronunciamento, uma modificação de contrato consiste na “alteração no alcance ou no preço (ou ambos) de contrato que seja aprovada pelas partes do contrato.[…] A modificação de contrato existe quando as partes do contrato aprovam a modificação que cria novos direitos e obrigações executáveis das partes do contrato ou que modifica direitos e obrigações executáveis existentes” (grifos nossos).

Havendo uma modificação contratual, como por exemplo, a renegociação com o cliente quanto ao objeto, prazos e valores contratados, como no caso de adiamento de eventos, suspensão de aulas, alteração de produtos ou redução de preços, o primeiro passo será avaliar se tal modificação enquadrar-se-á na definição contida no item 18. Para tanto, será necessário que o contador realize uma avaliação criteriosa, a fim de verificar se, de fato, terá ocorrido uma modificação e se esta criará ou modificará direitos e obrigações executáveis.

Feita essa avaliação e, de fato, restar configurada uma modificação contratual, o contador deverá definir o tratamento contábil mais adequado a ser aplicado. Para tanto, deverá avaliar se a modificação caracterizar-se-á como um contrato em separado, um novo contrato com a rescisão do contrato existente ou, simplesmente, parte do contrato existente. Vamos entender um pouco mais sobre isso.

A modificação contratual deverá ser tratada como um contrato separado somente se o alcance do contrato tiver aumentado devido à inclusão de bens ou serviços distintos[2] e se, consequentemente, o aumento no preço pactuado refletir os preços de venda individuais desses bens ou serviços e quaisquer ajustes apropriados desse preço para refletir as circunstâncias do contrato específico (item 20, CPC 47). Neste caso, não há muito o que se discutir, pois, teremos a aplicação dos critérios atinentes à contabilização de novos contratos, isto é, a modificação será tratada como uma nova operação de venda de bens u serviços. Por isso, considerando a proposta do presente artigo, não nos aprofundaremos neste tópico específico.

Contudo, se a modificação contratual não contemplar a inclusão de bens ou serviços distintos ou a alteração do preço não refletir os preços de venda individuais dos bens ou serviços incluídos, o tratamento a ser conferido à tal modificação dependerá dos bens ou serviços prometidos no contrato original que ainda não tiverem sido transferidos na data dessa modificação. Vejamos.

Se os bens ou serviços ainda não transferidos forem distintos daqueles já transferidos, a modificação contratual deverá ser tratada como a rescisão do contrato existente e a criação de novo contrato. Neste caso, o valor da contraprestação a ser alocado às obrigações de performance[3] ainda não satisfeitas, será a soma da (alínea “a”, item 21, CPC 47):

(i) contraprestação prometida pelo cliente (incluindo quantias já recebidas do cliente) incluída na estimativa do preço da transação do contrato original e que ainda não tenha sido reconhecida como receita; e

(ii) contraprestação prometida como parte da modificação do contrato.

Por outro lado, se os bens ou serviços remanescentes não forem distintos daqueles já transferidos, ou seja, todos representavam uma única obrigação de performance, a modificação contratual deverá ser tratada como se fosse parte do contrato existente. Nessa situação, tem-se que o efeito sobre o preço da transação e sobre a mensuração pela entidade do progresso em relação à satisfação completa da obrigação de performance deverá ser reconhecido como ajuste da receita (seja como aumento ou redução da receita) na data da modificação do contrato (ou seja, o ajuste da receita é feito em base cumulativa) (alínea “b”, item 21, CPC 47).

Vale ressaltar que, se o contrato, eventualmente, sofrer modificação cujas características exijam a aplicação de tratamentos contábeis distintos, o contador deverá segregar tais modificações e contabilizar os efeitos correspondentes de acordo com a regra contábil pertinente.

Por fim, vale observar que, havendo redução de preços sem que tenha sido verificada uma modificação contratual, conforme definição do CPC 47, temos que tal redução deverá ser alocada, via de regra, a cada obrigação de performance, utilizando o mesmo critério adotado no início do contrato, o que deve ser feito, de maneira geral, com base nos preços de venda individuais dos bens e serviços objeto do contrato. Sendo assim, em relação à parcela da obrigação de performance já satisfeita e, portanto, cuja receita já tenha sido reconhecida, uma redução da receita deverá ser reconhecida no período em que ocorrer a alteração no preço de transação.

Para ilustrar parte do que comentamos até aqui, apresentamos, a seguir, um exemplo que trata da contabilização de uma modificação de contrato.

Exemplo

Considere que a escola ABC Ltda. possuísse 2.000 alunos, cujos respectivos contratos de anuais totalizassem, em média, R$ 12.000,00 (mensalidade de R$ 1.000,00).

Assumindo a incidência de 8,65% (ISS, PIS/Pasep e Cofins) à título de tributos sobre a receita bruta e a inexistência de qualquer outra parcela fixa ou variável de contraprestação, teríamos um preço de transação na ordem de R$ 10.962,00, o que resultaria um valor mensal de R$ 913,50. Neste nosso exemplo, o preço de transação corresponderia, em um primeiro o momento, à receita contábil, ou seja, à receita líquida,nossa velha conhecida.

Vamos supor que por conta da pandemia da covid-19, a escola tivesse antecipado as férias de julho para o mês de abril e que, em razão da continuidade das medidas de isolamento social, tivesse optado pela realização de aulas não presenciais para os meses de maio, junho e julho, e que, por isso, tivesse concedido um desconto de 30% nas mensalidades desses meses. Tudo isso com aprovação dos pais dos alunos.

Ao avaliar essas alterações, o contador teria concluído que elas poderiam ser consideradas modificações de contrato conforme o CPC 47, pois, teriam sido aprovadas pelas partes e que teriam modificado direitos e obrigações existentes, seja pela redução no valor do contrato, seja pelo fato de que 3 meses letivos iriam passar a ser não presenciais.

Nessa avaliação, o contador também teria considerado que não se trataria de um novo contrato, pois, não teria havido a inclusão de um serviço diferente, distinto, uma vez que, muito embora a modalidade de fornecimento tivesse sido modificada, ainda se trataria dos serviços educacionais contratados originalmente, ou seja, segundo o julgamento feito por ele, não estaríamos diante de uma nova obrigação de performance. Ademais, não teria ocorrido um aumento no preço pactuado, muito pelo contrário, tal preço teria sido reduzido. Diante de todas essas características, o contador teria chegado à conclusão de que a modificação contratual deveria ser contabilizada como parte do contrato existente.

Perceba, esse é o ponto crítico! A avaliação quanto à existência ou não de uma modificação contratual, bem como quanto às características de tal modificação, são cruciais para a determinação do tratamento contábil a ser conferido. Aqui, de fato, cabe muita subjetividade. Desse modo, a questão principal é que essa avaliação deve ser realizada de forma responsável, criteriosa e com base em elementos confiáveis. Um detalhe não considerado ou interpretado sob uma perspectiva diferente pode resultar em um julgamento distinto ou, até mesmo, inadequado.

Por exemplo, se entendêssemos que as aulas não presenciais seriam uma outra obrigação de performance, por apresentarem características distintas da modalidade presencial, poderíamos considerar que, para tais aulas, teríamos a rescisão parcial do contrato original e a criação de um novo contrato. É possível? A depender das circunstâncias, sim! Em verdade, no final das contas, o que importa realmente é a transparência quanto ao julgamento que foi feito e a confiabilidade dos elementos que o suportaram. Contudo, em casos como este, para evitar distorções indesejadas em razão da aplicação de tratamentos contábeis distintos para situações semelhantes (o que pode oferecer oportunidades para a manipulação da informação), é importante que os parâmetros a serem observados no julgamento envolvendo tais situações sejam claramente definidos no âmbito das políticas contábeis da empresa[4].

Dando sequência ao exemplo, vamos considerar que, para os meses de janeiro a abril, o reconhecimento da receita tivesse ocorrido normalmente, conforme os seguintes lançamentos contábeis:

Portanto, para cada um dos meses de janeiro a abril, teríamos a seguinte composição:

O desconto de 30% concedido sobre as mensalidades dos meses de maio, junho e julho, corresponderia ao total de R$ 900,00 por aluno. Muito embora tal desconto tivesse tomado como referência a mensalidade, o seu efeito sobre o contrato deve ser analisado sob a perspectiva da anualidade. Observe que, no exemplo, a modificação contratual foi caracterizada como parte do contrato existente, portanto, neste caso, o efeito do desconto sobre o preço da transação e sobre a mensuração do progresso em relação à satisfação completa da obrigação de performance deverá ser reconhecido como ajuste da receita na data da modificação do contrato.

Em outras palavras, os R$ 900,00 deveriam ser alocados ao longo do ano, afetando tanto a receita já reconhecida (janeiro a abril) como aquela que irá ser reconhecida (maio a dezembro). Sendo assim, teríamos o seguinte:

A diferença entre as mensalidades corresponde ao efeito total do desconto, considerando, inclusive, a redução da tributação sobre a receita, ou seja, o desconto de R$ 900,00 proporciona uma redução efetiva de R$ 822,15 no preço do contrato, uma vez que ele reduz a base de cálculo dos tributos, gerando uma economia de R$ 77,85. Considerando todos os alunos, essa economia seria de R$ 155.700,00 para todo ano (ou R$ 12.975,00 ao mês), de modo que o efeito total do desconto resultaria uma redução efetiva de R$ 1.644.300,00 na receita anual. Diante dessa situação, a ABC passaria a reconhecer uma receita (líquida) de R$ 1.689.975,00 a partir do mês de maio.

Contudo, perceba que, como o efeito deve ser considerado para todo o contrato, a ABC deveria realizar um ajuste cumulativo relativamente à receita já reconhecida (janeiro a abril), no caso, um ajuste negativo, no valor de R$ 548.100,00, que seria reconhecido já no mês de maio, afetando, portanto, a receita nesse mês, cujo valor efetivamente reconhecido deveria ser na ordem de R$ 1.141.875,00 (1.689.975,00 – 548.100,00).

De forma mais simples, poderíamos também considerar a receita total que deveria ser reconhecida até maio e deduzir o que já teria sido reconhecido até abril. O resultado representaria a receita a ser reconhecida, a qual, neste exemplo, como posto acima, seria no valor de R$ 1.141.875,00, líquido dos tributos {[(20.279.700,00/12) x 5] – 7.308.000,00}.

Vejamos a configuração do registro da receita na escrituração contábil, para os meses de maio, junho e julho:

Eis os lançamentos para o mês de maio:

Para os meses de junho (a) e julho (b), teríamos:

Como a receita bruta tem seu registro obrigatório, em razão observância do disposto no inciso I do art. 187 da Lei das S.A. e no art. 12 do Decreto-Lei nº 1.598, de 1977, bem como de acordo com o parágrafo 112-A do CPC 47, e pelo fato de que ela difere da receita contábil, é preciso efetuar ajustes a fim de conciliar as eventuais diferenças.

No presente exemplo, tais diferenças decorrem dos tributos sobre a receita, do desconto concedido e do efeito líquido da modificação do contrato. Para os dois primeiros itens, não temos nenhuma novidade, são deduções da receita bruta e encontramos previsão expressa no inciso I do art. 187 da Lei das S.A. e nos incisos II e III do § 1º do art. 12 do Decreto-Lei nº 1.598, de 1977. Até aí, tudo bem. Mas, no caso do “ajuste da receita bruta” temos um elemento introduzido no contexto da Lei nº 12.973, de 2014, e que é consequência natural das diferenças entre as receita bruta e contábil, não contempladas pelas deduções já previstas.

O ajuste da receita bruta, de fato, é um ajuste e não uma dedução. Comporta valores devedores ou credores, a depender da natureza da diferença, conforme previsto no art. 26 da Instrução Normativa RFB nº 1.700, de 2017, e deve ser objeto de ajuste (adição ou exclusão) na determinação do lucro real e do resultado ajustado. O seu papel é fundamental, pois permite conciliar as visões jurídica e econômica da receita na escrituração comercial. Em relação aos procedimentos contábeis específicos, introduzidos ou alterados pelo CPC 47, dentre eles, a modificação de contratos, esse ajuste também é previsto no anexo IV da Instrução Normativa RFB nº 1.753, de 2017

Continuando, temos que, no mês de maio, a diferença total que deveria ser ajustada equivaleria a R$ 685.125,00, que nada mais seria do que o somatório da diferença mensal de R$ 137.025,00 dos meses de janeiro a maio. Tal diferença mensal corresponderia ao efeito do desconto total líquido da economia tributária
[(1.800.000,00 – 155.700,00)/12] .

Na contabilização apresentada para o mês de maio, somente teria sido destacada uma única parcela dos R$ 137.025,00, porque a diferença entre desconto concedido registrado como dedução da receita bruta e a economia tributária obtida para esse mês resultaria em R$ 548.100,00, valor que representaria, justamente, a diferença para os meses de janeiro a abril.

Já para os meses de junho e julho, observe que teríamos um ajuste da receita bruta positivo no valor de R$ 411.075,00. Entretanto, perceba que a receita líquida seria de R$ 1.689.975,00, refletindo a redução de R$ 137.025,00, valor este resultante da diferença entre o desconto líquido (R$ 548.100,00) e o ajuste da receita bruta (R$ 411.075,00).

Toda essa “ginástica” contábil é necessária para que seja possível registrar na escrituração a receita bruta e as suas deduções, bem como, a receita contábil, sem violar o regime de competência.

Outro elemento que merece comentários é o ativo financeiro, o recebível. Perceba, ele deverá refletir o valor sob a perspectiva da receita contábil e não da receita bruta, até para que seja respeitado o regime de competência. Observe que, em maio, por exemplo, a ABC teria emitido R$ 1.400.000,00 de recebíveis, muito embora a receita (líquida) tivesse sido de R$ 1.141.875,00. A diferença corresponderia aos tributos (R$ 121.100,00) e ao ajuste da receita bruta (R$ 137.025,00). Acontece que, contabilmente, o recebível deve ser mensurado, inicialmente, pelo preço de transação mais os tributos, ou seja, R$ 1.262.975,00 (1.141.875,00 + 121.100,00), já que, do ponto de vista contábil, à luz do regime de competência, somente esse valor representaria o recebível da ABC daquele período, portanto, caso todos os alunos efetuassem o pagamento de acordo com o carnê de mensalidades (R$ 1.400.000,00), por exemplo, teríamos um adiantamento no valor de R$ 137.025,00. Esse é um dos efeitos temporais que podem ser observados em razão do tratamento contábil aplicado para a modificação contratual.

No que se refere aos demais meses, não haveria que se falar em desconto como dedução da receita bruta. Vejamos a configuração para o mês de agosto. Ela seria a mesma para os demais meses.

No final do período, teríamos o seguinte:

Especificamente na situação apresentada no exemplo, o ajuste da receita bruta, no final do ano, apresentaria saldo zero e, portanto, não exigiria o seu encerramento para fins de apuração do resultado do período. Isso porque, as diferenças temporárias entre as receitas bruta e contábil se restringiriam, unicamente, ao ano de 2020. Vejamos o razão dessa conta ao longo dos meses de maio a dezembro.

Por fim, é importante ressaltar que a aplicação de todo e qualquer método ou critério contábil não exigido expressamente lei, deve ser ponderado quanto à materialidade[5] da informação que será produzida, o que nos leva, necessariamente, à avaliação da relação custo x benefício.

Divulgação

Da leitura do item 110 do CPC 47, temos que a entidade deve divulgar informações, qualitativas e quantitativas, que permitam aos usuários das demonstrações contábeis compreender a natureza, o valor, a época e a incerteza das receitas e fluxos de caixa provenientes dos contratos com clientes.

No cenário atual, e considerando o que tratamos no presente artigo, dentre tais informações, destacamos aquelas pertinentes aos julgamentos contábeis mais significativos e às eventuais mudanças nesses julgamentos, quando da aplicação dos requisitos prescritos pelo CPC 47 para os contratos com clientes. Considerando o exemplo apresentado, deveriam ser evidenciadas as características da alteração contratual pactuada e as justificativas para o seu enquadramento como modificação de contrato e para o tratamento contábil aplicado.

É fundamental que haja clareza na identificação dos contratos que sofreram algum tipo de modificação ou cuja a identificação, conforme o item 9 do CPC 47, tenha sofrido alguma mudança, bem como se mostra necessário que os efeitos dessas alterações sobre os diversos elementos das demonstrações contábeis sejam devidamente evidenciados. Sempre que possível, essa evidenciação deve respeitar as características e necessidades dos seus usuários, sobretudo no âmbito das pequenas e médias empresas, permitindo, assim, que os impactos da crise da covid-19 sobre o patrimônio, o resultado e os fluxos de caixa das entidades, sejam adequadamente compreendidos, de modo que a informação contábil produzida seja útil e, portanto, capaz de fazer a diferença no processo de tomada de decisão.


[1] A contraprestação variável, como o próprio nome já diz, corresponde à parcela variável da contraprestação prometida pelo cliente no contrato. Tal variação pode advir, por exemplo, de descontos, abatimentos, restituições, créditos, concessões de preços, incentivos, bônus de desempenho, penalidades ou outros itens similares. Ela também pode ser verificada caso o direito à contraprestação depender da ocorrência ou não ocorrência de evento futuro, por exemplo, no caso em que o produto for vendido com direito de retorno ou se o valor fixo for prometido como bônus de desempenho em caso de ser atingido um marco especificado. A contraprestação variável deve ser estimada quando da determinação do preço de transação (itens 46, 50 e 51, CPC 47)

[2] De acordo com o item 27 do CPC 47, um bem ou serviço prometido ao cliente é considerado distinto, se ambos os critérios a seguir forem atendidos: (a) o cliente pode se beneficiar do bem ou serviço, seja isoladamente ou em conjunto com outros recursos que estejam prontamente disponíveis ao cliente; e (b) a promessa da entidade de transferir o bem ou o serviço ao cliente é separadamente identificável de outras promessas contidas no contrato.

[3] A obrigação de performance corresponde a cada promessa de transferir para o cliente: (a) bem ou serviço (ou grupo de bens ou serviços) distinto; ou (b) série de bens ou serviços distintos que sejam substancialmente os mesmos e que tenham o mesmo padrão de transferência para o cliente (item 22, CPC 47).

[4] De acordo com o Pronunciamento Técnico CPC 23 –  Políticas Contábeis, Mudança de Estimativa e Retificação de Erro, as Políticas Contábeis são os princípios, as bases, as convenções, as regras e as práticas específicas aplicados pela entidade na elaboração e na apresentação de demonstrações contábeis.

[5] De acordo com o Pronunciamento Técnico CPC 00 (R2) – Estrutura Conceitual para Relatório Financeiro (item 2.11), podemos dizer que se uma informação é considerada material se a sua omissão, distorção ou obscuridade, puder influenciar, razoavelmente, as decisões dos seus usuários. Eis que, ainda segundo a Estrutura Conceitual (item2.11), “a materialidade é um aspecto de relevância específico da entidade com base na natureza ou magnitude, ou ambas, dos itens aos quais as informações se referem no contexto do relatório financeiro da entidade individual. Consequentemente, não se pode especificar um limite quantitativo uniforme para materialidade ou predeterminar o que pode ser material em uma situação específica”.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto-Lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977. Altera a legislação do imposto sobre a renda.

______. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações

COMITÊ DE PRONUNCIAMENTOS CONTÁBEIS (CPC). Pronunciamento Técnico CPC 00 (R2) – Estrutura Conceitual para Relatório Financeiro.

______. Pronunciamento Técnico CPC 23 –  Políticas Contábeis, Mudança de Estimativa e Retificação de Erro.

______. Pronunciamento Técnico CPC 47 – Receita de Contrato com Cliente.

Contabilizando Reflexos da Covid-19 (parte III): Identificação e Modificação de Contratos – Pronunciamento Técnico CPC 47