O princípio da precaução em tempos de riscos globais sob a ótica de Olivier Godard

Tradução Livre e Síntese de Cléber Nilson F. Amorim Junior

 

Criado em 04/05/2020

Publicado em 04/05/2020

Acompanhe o Boletim:

O princípio da precaução deve ser adotado para avaliar o problema dos riscos, segundo uma nova forma de ação entre a ciência e a democracia. Este modelo pressupõe que a análise e gestão de riscos seja baseada no conhecimento científico objetivo em oposição ao modelo clássico sustentado na legitimidade racional-legal. 

Dito isto, segue a tradução e síntese do artigo Le principe de précaution une nouvelle logique de l’action entre science et démocratie, produzido por Olivier Godard, PHD em economia pela Universidade de Paris, cuja contribuição para a compreensão do assunto tratado é de valor inestimável.

O princípio da precaução situa-se na interface entre duas formas macroscópicas de representação: a representação do mundo nas suas diferentes vertentes (mundo físico, social, objetos técnicos etc.) marcado pela tensão entre as representações sociais e as representações científicas, e, a representação da responsabilidade de salvaguardar os interesses e exigências dos cidadãos por parte das instituições públicas. 

Neste contexto, a tomada de decisões bem fundamentadas sobre a problemática dos riscos depende, essencialmente, do nível científico da peritagem realizada pelo Estado. A importância do princípio da precaução resulta das evoluções econômicas e sociais recentes, uma vez que, até então, não existiam mecanismos de prevenção e proteção e, desta forma, a população, instituições públicas e altos funcionários não demonstravam real vontade de prevenir os riscos e gerir as respectivas crises. 

O grande desafio do princípio da precaução consiste em dotar as instituições públicas dos fundamentos racionais de decisão, através da investigação de novas formas de relação entre as representações do mundo e dos cidadãos. Para esse efeito, é necessário, por um lado, que as ações sejam equacionadas no seu conteúdo e programadas em função das perspectivas de desenvolvimento dos conhecimentos e, por outro lado, o envolvimento de vários pesquisadores e autores no estudo de ações geradoras de risco como meio de conhecer a sua natureza e amplitude e, consequentemente, tratar essas ações como uma experiência científica tal como ela se apresenta. 

Entre os anos de 1986 e 1993 o Estado-Providência conduziu a sua política de análise de riscos sem intervenção direta da ciência, ou seja, sem recorrer à análise científica dos problemas em jogo e riscos associados. A razão para tal postura residiu em estudos estatísticos segundo os quais, nos domínios da saúde pública, alimentação e ambiente, a ciência não seria capaz de produzir, em tempo útil, os conhecimentos necessários e válidos para fundamentar as decisões das instituições públicas. 

Nessas circunstâncias e em face da irreversibilidade ou gravidade de determinadas situações de risco, parte da sociedade adotou medidas de prevenção precoce, sem possuir um quadro científico global. Esta mesma atitude foi também adotada por altos dirigentes de empresas. Assim, agiu-se antes de conhecer os problemas na sua essência, conduzindo a uma falta de adequação entre as medidas de prevenção e a realidade dos riscos surgidos. 

O princípio da precaução na perspectiva de Godard surge, assim, como a necessidade de se dispor de mecanismos (certezas) científicos dos casos em jogo para avaliação rigorosa dos riscos inerentes. 

No seu estado embrionário, o princípio da precaução foi utilizado na Alemanha nos finais dos anos sessenta no domínio da proteção do ambiente e na gestão dos recursos naturais. Posteriormente, em 1987, o princípio da precaução foi claramente ventilado durante a Décima Conferência Internacional sobre a Proteção do Mar do Norte como meio de pressionar a adoção de medidas de controle de substâncias tóxicas. 

No entanto, o princípio da precaução só foi proposto oficialmente na declaração do Rio de Janeiro em 1992, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, apresentando o princípio 15 o seguinte teor: 

De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser observado pelos Estados, de acordo com as suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios e irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para adiar medidas eficazes e economicamente viáveis para prever a degradação ambiental.

Nessas circunstâncias, o princípio da precaução apresenta-se como instrumento político e jurídico de gestão de riscos, nos casos em que prevalece a incerteza científica sobre as repercussões que as novas descobertas da própria ciência e da técnica podem causar. 

Na Europa, o princípio da precaução não se confinou apenas à área do ambiente, pelo contrário, verificou-se o seu rápido alargamento às áreas da segurança alimentar e da saúde pública. Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso emblemático chamado Mal da Vaca Louca

O Conselho de Estados propôs a adoção da seguinte medida: em situação de risco, uma hipótese subjetiva deverá ser considerada provisoriamente válida, mesmo que formalmente não tenha sido demonstrada. 

Também a Corte de Justiça Europeia validou o princípio da precaução acerca da interdição da exportação da carne de vaca da Inglaterra ao adotar a seguinte posição: enquanto persistirem dúvidas quanto aos riscos para a saúde das pessoas, as instituições poderão tomar medidas sem esperar que a realidade e a gravidade dos riscos associados sejam plenamente demonstradas. 

A questão de saber quando e como se deve utilizar o referido princípio suscita atualmente numerosas reflexões e tomadas de posição heterogêneas e por vezes contraditórias por parte de diversos países e atores sociais envolvidos. 

A prevalência da dúvida sobre a causa e o grau de perigo potencial suscita o problema de ser possível distinguir entre a aplicação racional e a utilização irracional ou arbitrária do princípio da precaução como norma de direito. As diretrizes como a proporcionalidade e a coerência, que devem orientar as decisões de atuar ou de não atuar, tanto no campo político, como no do direito, exigem das instâncias decisórias o aprofundamento da compreensão do conteúdo e sentido do princípio da precaução. 

Neste contexto, é interrogado se o princípio é uma simples extensão da prudência ou uma ruptura dos valores da modernidade; se é uma obrigação de prevenção ou um direito reconhecido de atuar às autoridades administrativas; e finalmente se é uma regra de abstenção ou uma regra de ação. 

Na realidade, as instâncias de decisão confrontam-se, constantemente, com o dilema de estabelecer o equilíbrio entre, por um lado, as liberdades e os direitos dos indivíduos, das empresas e das organizações, e, por outro, a necessidade de reduzir o risco de efeitos nocivos ao ambiente e à saúde das pessoas. 

Por conseguinte, a obtenção de medidas coerentes demanda um processo de tomada de decisão estruturado e baseado em informações detalhadas de caráter objetivo e científico.

Escrevia Beck, em 1992, que “o risco atual não é produzido no contexto individual ou pessoal, mas é associado a situações globais de ameaça para toda a humanidade”. Trata-se de uma concepção ampliada do risco na qual se enquadra como causa determinante o desenvolvimento científico e tecnológico na medida em que este vem acompanhado de uma produção sistemática de riscos. 

Já Godard partilha a ideia de que o princípio da precaução consiste numa nova visão do mundo, rompendo com certos valores e normas centrais de comportamento que precederam o desenvolvimento tecnológico, industrial e econômico do período contemporâneo. O autor sustenta que não se deve associar o princípio da precaução a uma regra de abstenção. A maior parte das situações necessitam de uma arbitragem entre um e outro risco e não entre uma opção de risco e outra de ausência completa de risco. 

Segundo o autor, num mundo em que o conjunto de procuras concorrentes não pode ser satisfeito e no qual se impõem arbitragens sobre o modo de emprego dos recursos econômicos é impossível que o risco zero possa ser considerado como norma universal. Os novos riscos associados ao desenvolvimento científico e tecnológico comportam duas vias distintas de reflexão: por um lado, a gestão coletiva dos riscos potenciais e hipotéticos e, por outro lado, a restauração da confiança dos cidadãos no funcionamento das instituições públicas e na capacidade dos responsáveis públicos e privados e também dos cientistas para medirem os riscos que as suas decisões comportam para os cidadãos e para o ambiente. 

O princípio da precaução se assenta sobre situações delicadas com componentes opostos. Neste contexto, renunciando-se às perspectivas de uma ação ajustada à natureza e às fontes de perigo que permitem um conhecimento suficientemente desenvolvido, a ação da precaução tende a sofrer de um defeito de legitimidade e de se expor a enormes controvérsias sociais.

É do lado do imperativo ético que alguns procuram a fonte de legitimidade necessária, trazendo a lume o princípio da responsabilidade proposto por Hans Jonas em 1990.

Convém salientar que tanto a ética aristotélica como a kantiana, assim como a maioria das teorias éticas propostas até o século XX não levaram em consideração a questão da manutenção das condições de sobrevivência no futuro. Por este motivo, não poderão ter expressão atual face aos problemas ambientais e de saúde com que a sociedade se debate. 

Para se compreender melhor a importância do princípio da responsabilidade, transcrevem-se linhas do pensamento de Jonas (1990): 

Nenhuma ética tradicional nos instrui sobre as normas do bem e do mal às quais se devem submeter as modalidades inteiramente novas do poder e de suas criações possíveis. O novo continente da práxis coletiva que construímos com a alta tecnologia constitui, para a teoria ética, uma terra de ninguém […]. Neste contexto, o que pode servir de bússola? A previsão do perigo. Antes de tudo nos seus relâmpagos surdos e distantes, vindos do futuro, na manifestação da sua abrangência planetária e na profundidade do seu comportamento humano que podem revelar os princípios éticos dos quais se permitem deduzir as novas obrigações do novo poder. 

Existe aqui a ideia clara de sintonia entre a ética e a justificação de previsão de perigo, tendo em vista os novos poderes e a nova dimensão da capacidade humana de antever os riscos potencializados pelo desenvolvimento tecnológico. 

Contudo, segundo Godard, além da questão ética, existem três eixos de tensão no campo da precaução que devem ser considerados: ciência/imaginação; opinião/razão e interesses/ética, porque é no cruzamento desses eixos que a precaução está situada. Com base nesta ideia, o autor propôs uma carta de precaução. 

Para melhor entendimento do leitor de tal concepção, propõe-se a visualização mental de uma estrela de seis pontas, tal qual a que está presente na bandeira de Israel. Em cada uma de suas pontas se situa um fator relacionado à precaução, cada fator se agrupa em três pares em vértices opostos, como já se referiu: ciência/imaginação; opinião/razão; e interesses/ética. A precaução está bem no centro da estrela, como ponto de equilíbrio, em torno do qual orbitam diferentes fatores e fenômenos. 

Assim, surgem fenômenos, produzidos pela interação entre os fatores acima mencionados e que devem ser considerados e conciliados na atividade da gestão de riscos, como é o caso, a título de exemplo, do medo experimentado pela opinião sob o efeito da imaginação ou a aproximação econômica dos custos e dos benefícios na interface entre ciência e interesses, ou, ainda, o interesse geral revelado pela interação dos vértices opostos da ética e dos interesses particulares.

O desafio, nestes termos, é encontrar na dinâmica da interação destes fatores o equilíbrio necessário, dentro de uma ponderação entre fatos constatados cientificamente, valores e interesses da sociedade, a solução que melhor venha se adequar à problemática dos riscos. 

Dessa forma, o princípio da precaução é atualmente uma ferramenta de importância crucial na gestão de riscos nas áreas do ambiente, da alimentação e da saúde pública e do trabalhador. No entanto, este princípio encerra ainda alguma complexidade dado que, à luz da ética, permite análises distintas e, por esse motivo, a tomada de ações com algum caráter de subjetividade. 

Por esse motivo, deverá existir um consenso, em nível mundial, em torno do grau de risco que certos valores morais comportam em função dos sucessivos avanços científicos tecnológicos. 

Portanto, o princípio da precaução deverá ter suporte científico, para permitir a adoção de medidas bem fundamentadas por parte das instituições públicas e governamentais a fim de conduzir à minimização de riscos e ameaças à manutenção e bem-estar da humanidade.

REFERÊNCIAS

BECK, U. Risk society. London: Sage, 1992. 

CONFERÊNCIA das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento. Estudos Avançados, Rio de Janeiro. v. 6, n. 15, jun. 1992. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v6n15/v6n15a13.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2020.

GODARD, Olivier. Le principe de précaution: une nouvelle logique de l’action entre science et démocratie. Le Risque, Paris, v. 11, p. 17-56, 2000.

JONAS, H. Le principe responsabilité: une éthique pour la civilisation technologique. Paris: Les Éditions Du Cerf, 1990. 

O princípio da precaução em tempos de riscos globais sob a ótica de Olivier Godard