Cruzamento de informações no SPED 4.0: Perspectivas 2019

Por Caio Takano

Sócio no Takano|Przepiorka Advogados. Juiz Titular TIT/SP e CMT/SP. Professor de Direito Tributário e Compliance Fiscal.

Criado em 26/08/2019

Publicado em 28/08/2019

Acompanhe o Boletim:

Rigorosamente, o tema não é novo, mas, ainda assim, ano após ano, continua atraindo a atenção de profissionais da área fiscal em razão de sua importância e constante evolução. É sobre este tema que dedicarei meu artigo deste mês (junho/19).

Com a crescente expansão do Sped – seja com criação de novos módulos, como o eSocial, ou de novos registros ou campos –, multiplicam-se as possibilidades de fontes de verificação, pelas autoridades fiscais, da consistência da informação prestada pelos contribuintes em suas obrigações acessórias. O risco tributário, igualmente, eleva-se sobremaneira: as multas tributárias pela inconsistência nas informações, seja inexatidão ou omissão, têm sido cada vez mais relevantes. 

Multa por entrega de obrigações acessórias com informações inexatas ou omissas
Ambiente SpedMultaFundamentação
EFD ICMS IPI, ECF (lucro real)3% sobre o valor das transações, mínimo de R$ 100,00.Art. 57 da MP 2.158/01
EFD-Contribuições, ECD, ECF (lucro presumido e lucro arbitrado)5% sobre o valor das transações, limitado a 1% da receita bruta do período.Art. 12 da Lei nº 8.218/91
ECD-Reinf2% sobre o valor do montante dos tributos e contribuições informadosArt. 7º da Lei nº 10.426/02
Nota Fiscal eletrônicaMultas variam de acordo com cada Estado. Em São Paulo, a multa é de 30% sobre o valor da operação (Art. 85, inc. IV, “b” da Lei nº 6.374/89).

E não é só. O aumento do volume de informações proporcionado pelas novas exigências no ambiente do Sped pode ser utilizado, eventualmente, para justificar fiscalizações ou lançamentos tributários referentes a fatos geradores de exercícios anteriores (art. 144, §1º do CTN).

É bem verdade que muitos softwares, hoje, realizam alguns testes e cruzamentos de informações, diminuindo o espaço para que haja inconsistências nas informações prestadas pelos contribuintes. Entretanto, permanece relevante abordar com seriedade este tema, seja porque nem todas as empresas contam com esses softwares, seja porque o uso da informação pelo fisco é matéria em constante transformação e evolução.

Naturalmente, as possibilidades de cruzamento de informações são praticamente infinitas, razão pela qual restaria fadada à superficialidade qualquer estudo que se propusesse a esgotar o tema. Neste artigo, a ideia é apenas discutir algumas tendências de cruzamentos de informações, dos quais se espera uma maior ocorrência em 2019, seja com base na minha experiência como julgador administrativo no Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (TIT/SP) e no Conselho Municipal de Tributos de São Paulo (CMT/SP), nas conversas com alunos e outros profissionais da área fiscal em aulas e congressos sobre o tema, ou nas manifestações oficiais do Fisco. 

  • Perspectivas de cruzamentos de informações no âmbito federal (RFB)

No âmbito da Receita Federal do Brasil, é impossível não começar a análise, senão pelas diretrizes que constam no “Plano Anual de Fiscalização 2019”. Surpreende-se aquele que analisa o referido plano em detalhes ao constatar que, a despeito de a RFB possuir os instrumentos mais eficientes para realizar um cruzamento de informações holístico e mais complexo – o “supercomputador” T-Rex, o software Harpia, acesso a um maior número de módulos no Sped – não se verifica uma intenção (pelo menos publicada) de se realizar um uso intensivo do Sped para identificação de inconsistências fiscais.

Em vez disso, encontramos destacados como pontos de atuação futura da RFB os seguintes cruzamentos de informações fiscais:

1. Operação insuficiência de IRPJ e CSLL – Identificação de inconsistências encontradas entre as informações declaradas em DCTF e informações constantes da Escrituração Contábil e Fiscal – ECF.

2. Operação GILRAT – Cruzamento dos valores informados na GFIP com os valores efetivamente recolhidos, no sentido de verificar a regularidade do cumprimento das obrigações previdenciárias relativas à contribuição patronal destinada ao financiamento dos benefícios concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho (GILRAT), incidentes sobre a remuneração paga aos segurados empregados.

3. Autônomos – Divergências apuradas a partir da DIRPF em que contribuintes declararam rendimentos recebidos de pessoa física e não recolheram a contribuição previdenciária no período de 2014 e 2015.

Há no plano de fiscalização ainda, embora sem destaque e/ou detalhamento específico, referências a outros cruzamentos de informações, como “Dirf x Darf”, ou seja, a verificação de se há divergências entre os valores de Imposto sobre a Renda Retido na Fonte – IRRF informados na Declaração do Imposto de Renda Retido na Fonte (Dirf) e os recolhidos por meio de Documento de Arrecadação de Receitas Federais (Darf). Aqui vale lembrar que a mesma lógica ocorre entre “Dirf x DCTF”: igualmente será verificado se os valores das retenções declaradas nas DCTFs estão iguais aos valores que serão transmitidos nas DIRFs.

O que se constata, portanto, é o uso da tecnologia para se realizar cruzamentos de informações que há muito já eram realizados nas fiscalizações pessoais da RFB, mas, agora, em ambiente digital. Não se vê a utilização extensiva das informações dos novos módulos, registros e campos no âmbito do Sped, principalmente em situações entre diferentes entes tributantes. 

De outro lado, sabe-se que a RFB faz uso de diversas informações obtidas fora do Sped, como a Declaração de Operações Imobiliárias (DOI), preenchida pelos cartórios; a Declaração de Informações sobre Atividade Imobiliária (DIMOB), preenchida pelas imobiliárias; a E-Financeira, preenchida pelas instituições financeiras; a Decred, preenchida pelas administradoras de cartões de crédito; Declaração de Serviços Médicos e de Saúde (DMED), preenchida por prestadores de serviços médicos e de saúde; operadoras de plano privado de assistência à saúde, de serviços de saúde e de plano privado de assistência à saúde; para citar algumas. Todas essas informações alimentam o “T-Rex” e são utilizadas para analisar as informações prestadas pelos contribuintes em sua apuração de tributos federais.

Naturalmente, há situações conhecidas em que a RFB faz o cruzamento de informações dentro do âmbito do Sped, como, por exemplo, a verificação entre informações existentes na Escrituração Contábil Digital – ECD, na Escrituração Contábil Fiscal – ECF e na Declaração de Débitos e Créditos de Tributos Federais – DCTF, para verificar a apuração de débitos de IRPJ e CSLL, bem como o cruzamento da ECD com a EFD-Contribuições, para identificar valores de receitas, de tributos devidos etc. Mas em regra, são cruzamentos pontuais, realizados com a finalidade de se verificar a consistência entre obrigações acessórias de apuração do tributo e aquelas de constituição do crédito tributário. São, pois, cruzamentos que visam permitir que se faça, eletrônica e remotamente, não obstante em velocidade infinitamente superior, aquilo que o auditor fiscal realizava ao solicitar e analisar os livros e documentos fiscais.

Vale mencionar, ainda, existir inúmeros caminhos possíveis, ainda, prontos para serem trilhados num futuro próximo, como a utilização de informações internas ao Sped, como as informações do Registro Y540 – “Discriminação da Receita de Vendas dos Estabelecimentos por Atividade Econômica” ou do Registro Y600 – “Identificação e Remuneração de Sócios, Titulares, Dirigentes e Conselheiros”, ambos da ECF, bem como com informações externas ao Sped, como aquelas declaradas no Siscoserv ou na CBE (declaração de Capitais Brasileiros no Exterior). São alguns exemplos que demonstram a constante necessidade de o contribuinte se manter atualizado e “de olho” nas novidades do Sped, com pensamento e visão crítica, para se verificar como as novas informações exigidas poderão afetar o compliance fiscal da empresa

  • Perspectivas de cruzamentos de informações no âmbito estadual (SEFAZ)

No âmbito estadual, a intensidade do uso das informações fiscais fornecidas por obrigações acessórias diversas varia em cada estado da federação. 

Exemplificativamente, podemos citar o Estado da Bahia como exemplo de ente federativo que tem explorado competentemente o ambiente de informações digitais, conseguindo “recuperar” de R$ 223 milhões em ICMS devido, por intermédio da utilização de dados disponíveis eletronicamente obtidos pelo seu Painel de Planejamento da Fiscalização (PPF), no qual se integrou informações constantes na EFD, na ECD, no Conhecimento de Transporte Eletrônico (CT-e), na Nota Fiscal Eletrônica (NF-e), bem como em informações obtidas da arrecadação, cadastro e autuação de contribuintes, no âmbito interno da base de dados SEFAZ/BA, bem como dados externos, obtidos, por exemplo, de operadoras de cartões de crédito.

No Estado de São Paulo, de outro lado, o uso das informações fiscais e o seu cruzamento têm sido mais tímidos, normalmente ocorrendo autuações fiscais pela falta de escrituração de livros fiscais (ou seja, a tradicional EFD “entregue em branco”, ainda que parcialmente); problemas no preenchimento dos documentos fiscais que, por vezes, implicam sua inidoneidade para fins fiscais; ou, ainda, cruzamento de informações com objetivo de se verificar a consistência entre obrigações acessórias de apuração do tributo e aquelas de constituição do crédito tributário (por exemplo: “NF-e” x “EFD ICMS IPI” x “GIA”).

É importante que se tenha em mente que os Estados possuem um dos documentos mais interessantes para utilizar como instrumento de verificação da consistência das informações fiscais fornecidas pelos contribuintes: a Nota Fiscal eletrônica (NF-e). E por quê? Simples: é uma obrigação acessória já consolidada, muito próxima da operação tributável, emitida antes da ocorrência do Fato Gerador, cuja possibilidade de cancelamento é bastante limitada em termos temporais (em regra, dentro de 24 horas) e todas as demais alterações são registradas em documentos próprios. Além disso, há obrigação de seus documentos auxiliares – que referenciam seu conteúdo – transitarem fisicamente nas etapas das operações as quais se referem e, hoje, ainda pode ser recusada pelo parceiro comercial (pela “Manifestação do Destinatário”), caso não reflita a operação fiscal. Daí a importância de manter um acompanhamento de perto das alterações e novas exigências de seu leiaute (como a exigência de constar o “responsável técnico” e o “local de entrega/recebimento da mercadoria”).

Podemos citar, exemplificativamente, a exigência de informações acerca da forma de pagamento. Numa análise superficial, não parece decorrer grandes consequências, senão precisar com maior nível de detalhe a operação tributável na exata dimensão de sua ocorrência. No entanto, a informação de que uma determinada operação foi paga mediante cartão de crédito pode apresentar consequências interessantes: (i) possibilidade de a SEFAZ conferir com os valores informados na Decred; (ii) verificação de extratos bancários para fins de aferição de efetivo pagamento, em exame de boa fé do contribuinte, nos casos de operações com documentos inidôneos ou de recebimentos/remessas desacompanhados de documento fiscal hábil; (iii) troca de informações com a RFB, que poderia utilizar tal informação para verificar se a receita das administradoras de cartão estão sendo tributadas pelo PIS e pela Cofins adequadamente, etc.

Também pela somatória dos valores das operações consignadas na NF-e/NFC-e (soma do faturamento), é possível verificar se a receita bruta do contribuinte foi adequadamente declarada na ECD (“Bloco I” – saldos e movimentações de contas de receitas) e na ECF (“Bloco N” – total do faturamento  / “Bloco P” – total do faturamento). Além de casos em que, pelo cotejo realizado entre a ECF e os Registro de Saídas no “Bloco C” e de Apuração do ICMS (E110/E210/E310) na EFD ICMS/IPI.

Assim, há, também em relação às administrações tributárias estaduais, um espaço ainda bastante amplo para uma intensificação do uso da tecnologia no auxílio de fiscalizações, o que vai demandar maior preparação dos contribuintes quanto mais intenso for o uso da informatização fiscal pelas administrações tributárias estaduais a que se submetem.

  • Perspectivas de cruzamentos de informações no âmbito municipal

Se as realidades das administrações fiscais estaduais são por vezes radicalmente distintas, menor uniformidade se constatará em relação ao uso e cruzamentos de informações fiscais no âmbito dos quase 5.600 municípios hoje existentes no Brasil.

Isso não significa que não haja interessante espaço para cogitar no uso da informatização fiscal no aprimoramento da fiscalização tributária. Pelo contrário, em razão de muitos municípios adotarem sistemas informatizados próprios e ainda não haver uma nota fiscal de serviços eletrônica de abrangência nacional, muitas vezes as informações detidas por municípios não são disponibilizadas para outros entes tributantes. 

A introdução do “Bloco B – Escrituração e Apuração do ISS” no âmbito do Sped – embora circunscrita apenas ao Distrito Federal em 2019 – nos dá um pequeno vislumbre da interação e da troca de informações fiscais que seria possível com a eventual inserção de informações referentes ao ISS no Sped. Podemos pensar, exemplificativamente, no uso do “Registro B470: Apuração do ISS” para obter as informações sobre a receita operacional do contribuinte (campo 8: Valor total da base de cálculo do ISS) e compará-las com a receita indicada na apuração do lucro presumido (“Registros P300/P500” da ECF) ou com a receita indicada para apuração do PIS e da Cofins, especialmente no regime cumulativo (“Bloco M” da EFD-Contribuições), ou apuração da CPRB (“Bloco P” da EFD-Contribuições). Ou ainda, para além da utilização das informações para fins estritamente fiscais, no uso de informações do “Registro B510: Uniprofissional – empregados e sócios” para verificar os profissionais habilitados e não habilitados a exercer a atividade fim da sociedade, sócios ou não, e a consistência dessas informações com aquelas que constam no eSocial ou no “Registro Y600: Identificação e Remuneração de Sócios, Titulares, Dirigentes e Conselheiros” da ECF.

Ainda que esse cenário de integração ainda não tenha sido alcançado, hoje algumas municipalidades se valem de cruzamentos de informações fiscais para fundamentar autuações. Tenho visto como Conselheiro do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo, por exemplo, algumas situações interessantes que certamente apontam pontos de atenção em relação aos quais o contribuinte deverá se preparar: (i) utilização de valores declarados como receita na ECF (ou na antiga DIPJ) sendo utilizados para gerar uma  presunção de omissão de receita tributável pelo ISS (invertendo o ônus da prova ao contribuinte, que deverá demonstrar a regular emissão de NFSe e recolhimento do imposto); (ii) a consideração da classificação das receitas na ECF (ex.: Receita de Prestação de Serviços – Mercado Externo) como indício para a configuração ou não de uma exportação de serviço, isento do ISS por força da Lei Complementar nº 116/03; (iii) o uso de informações da RAIS (futuramente, no eSocial) para verificar se o local indicado como estabelecimento prestador do serviço possui capacidade operacional e funcionários qualificados para a sua prestação.

O que se verifica, portanto, é que o Município de São Paulo, ainda que sem contar com uma integração eficiente com o sistema Sped, tem utilizado de forma bastante inteligente a troca de informações entre administrações tributárias e das informações de seu próprio sistema para otimizar os trabalhos de fiscalização. Trata-se de uma tendência que se espera seja adotada por outras municipalidades, tão logo perceberem o potencial que o uso adequado da informatização fiscal possui.

Em conclusão, todos esses exemplos – não exaustivos – são interessantes, na medida em que demonstram a rápida evolução da fiscalização na era digital. Para 2019, é de se esperar a utilização da informação fiscal nos moldes que tem sido tradicionalmente utilizado em fiscalizações anteriores ao Sped, com a diferença de que hoje é possível uma verificação mais acurada e praticamente instantânea de todos os livros e documentos fiscais entregues à administração tributária. No entanto, há ainda um amplo espaço para o uso das informações fiscais de forma mais holística e estratégica pelo Fisco – já adotado por algumas administrações tributárias – e que, certamente, justificará por que o tema do cruzamento de informações fiscais permanecerá como um tópico importantíssimo e atual nos próximos anos.

O Sped modificou substancialmente a forma pela qual o Direito Tributário se operacionaliza, integrando informações que, antes, encontravam-se em uma miríade de papéis distintos. O desafio do operador do direito – seja o profissional da área fiscal, seja o advogado que atua com o Direito Tributário – é justamente compreender as diferenças da fiscalização 4.0 daquela que existia há uma década atrás e, assim, não apenas antever os próximos pontos propícios de cruzamento de informações fiscais, como também ser intelectualmente independente dos softwares de mensageria.

Cruzamento de informações no SPED 4.0: Perspectivas 2019