Demurrage – Cortando o mal pela raiz

Por Rogerio Zarattini Chebabi

Professor e Advogado

Criado em 15/09/2022

Publicado em 27/09/2022

Acompanhe o Boletim:

Remetendo este artigo à tão falada operação padrão da Receita Federal, lembro que muitos importadores estão com contêineres presos, sem sequer que a eles se permita a desova, por falta de espaço nos armazéns. 

Enquanto isso, para deleite dos armadores, as taxas de armazenagem sobem diariamente.

Há casos em que com 1 só contêiner, importadores são cobrados por taxas que possibilitariam a compra de 50, 60 até 70 deles. 

Enfim, este é o melhor negócio do mundo para quem quer enriquecer às custas da inércia do Governo e martírio dos importadores.

Por experiência na advocacia, eu sei bem que é muito difícil vencer ações de cobrança de demurrage, porque quando chegam neste ponto o estrago já está feito e o judiciário é quase todo favorável aos armadores, com exceção de um Juiz em Santos – SP que entende os valores como abusivos.

Então a provável solução seria fazer cessar o crescimento da taxa, ainda que com contêiner preso. Quando falo “provável”, é porque a possível solução ainda não foi testada, porém, há um embasamento jurídico plausível nos estudos que fiz.

No Direito nada é certo. Sempre trabalhamos com probabilidades sobre casos já julgados. Como este tipo de demanda ainda não foi julgada, temos que nos ater à legislação, como, por exemplo o Código Civil e outros casos julgados que sejam minimamente parecidos. 

É o que fiz. Parti para os estudos que podem nos levar a uma tese que poderá — quem sabe — criar jurisprudência favorável aos importadores, para desespero dos armadores. A estratégia é um pouco complexa, mas viável. Vamos lá:

Estive em contato com várias empresas de vendas de contêineres marítimos no Brasil. Estes contêineres, para sem admitidos para comércio internacional, precisam ser certificados e esta certificação é possível e existente no nosso país.

Contêineres dry de 20 pés custam em média R$ 12.000,00 enquanto os de 40 pés custam R$ 17.000,00. Estou falando de contêineres em ótimas condições. A certificação é cobrada à parte, mas não é tão cara. 

Por exemplo, se o importador possui 1 contêiner de 40 cuja demurrage já esteja perto de R$ 17.000,00 é hora de pensar em agir. 

Em se tratando de contrato de locação de contêineres, o locador (armador) tem interesse na devolução dos equipamentos após o término da sua utilização; por sua vez, o locatário (importador) tem a obrigação de devolver os equipamentos no prazo estabelecido em contrato, sob pena de cobrança de demurrage.

O mero atraso na devolução não desnatura a obrigação de fazer, ou, ainda, de dar coisa certa (isto é, restituir o contêiner), ausente previsão legal nesse sentido; de maneira que o locador (armador) não poderá criar óbices à devolução dos equipamentos.

Vale lembrar que o locatário tem, não apenas o dever contratual, mas, também, o direito a se desincumbir de sua prestação. 

Uma das obrigações do armador, dono da unidade de carga, seria tentar reavê-lo ajuizando ação contra a própria União, muitas vezes representada pelo Auditor Fiscal que chefia a Alfândega responsável pelo despacho (no caso de se optar por Mandado de Segurança). Mas sabemos que não fará isso, porque quanto maior a demora, maior o lucro.

Por conseguinte contêineres são todos iguais, contanto que do mesmo tamanho e com as mesmas características. Por que não substituir aquele que está retido por outro igual e certificado?

A proposta que acho viável é o importador notificar o armador (ou seu agente), judicial ou extrajudicialmente, oferecendo um novo contêiner no lugar daquele que está retido, dando prazo de 3 dias para que ele se manifeste. Aposto que não responderão.

Se responderem, aposto que será uma resposta evasiva ou negativa. A partir daqui criamos um marco para cessar o crescimento da cobrança, porque o armador omitiu-se ou recusou-se a receber um contêiner com o qual poderia trabalhar.

A recusa poderá ser tida como injusta e poderá configurar má-fé que servirá para a ação que comentarei agora. Além disso, perpetua a mora, eleva o valor da dívida em benefício próprio, gerando onerosidade excessiva e enriquecimento ilícito. 

Acontecendo isso, ajuizaremos “Ação de consignação em pagamento para entrega de coisa certa”, oferecendo o depósito judicial do novo contêiner, o que será pedido em sede de liminar, de modo a paralisar o crescimento do valor da demurrage.

A ação de consignação de coisa móvel é procedimento especial, que visa permitir a realização do instituto de direito material, por meio do qual o autor da ação visa uma sentença declaratória da extinção da obrigação. (Art. 335, I, do Código Civil).

Nos termos do artigo 335 do Código Civil, a consignação tem lugar:

I. se o credor ao puder, ou, sem justa causa, recusar receber o pagamento, ou dar quitação na devida forma; 

Dentre os desdobramentos do princípio da probidade e da boa-fé objetiva, que os contratantes são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato (art. 422 do Código Civil), destaca-se o dever de cooperação, que fundamenta a exigência da adoção de um comportamento leal, pelo credor, que mitigue os próprios prejuízos decorrentes de eventual inadimplemento do devedor.

 Consoante o novo paradigma do direito das obrigações, credor e devedor não mais ocupam posições antagônicas, mas sim simbióticas, e a relação negocial caracteriza-se como um processo cujo núcleo encontra-se no conjunto de atividades necessárias à satisfação do credor, aptas, concomitantemente, a liberar o devedor do vínculo jurídico.

 Nesse sentido, leciona VERA MARIA JACOB DE FRADERA:

 “No sistema do Código Civil brasileiro de 2002, o duty to mitigate the loss poderia ser considerado um dever acessório, derivado do princípio da boa-fé objetiva, pois nosso legislador, com apoio na doutrina anterior ao atual Código, adota uma concepção cooperativa de contrato. Aliás, no dizer de Clóvis do Couto e Silva, todos os deveres anexos podem ser considerados como deveres de cooperação. (…) Não cumprindo o dever de mitigar o próprio prejuízo, o credor poderá sofrer sanções, seja com base na proibição de venire contra factum proprium, seja em razão de ter incidido em abuso de direito, como ocorre em França. No âmbito do direito brasileiro, existe o recurso à invocação da violação do princípio da boa-fé objetiva, cuja natureza de cláusula geral permite um tratamento individualizado de cada caso, a partir de determinados elementos comuns: a prática de uma negligência, por parte do credor, ensejando um dano patrimonial, um comportamento conduzindo a um aumento do prejuízo, configurando, então, uma culpa, vizinha daquela de natureza delitual” ( Pode o credor ser instado a diminuir o próprio prejuízo? – Revista Trimestral de Direito Civil RTDC, v. 5, nº 19, jul./set. 2004, p. 110/8 ).

Com efeito, “Agir com boa-fé implica, no direito das obrigações, atitude cooperativa entre credor e devedor. Portanto, exerce abusivamente o direito à indenização o credor que pretende ser indenizado apesar de não ter agido conforme a boa-fé, ou seja, que não agiu de forma cooperativa para evitar a ocorrência dos danos pelo emprego de esforços razoáveis. Diante do inadimplemento de uma obrigação, a boa-fé impõe que o credor colabore com o devedor e evite danos ao seu próprio patrimônio, de forma a evitar desperdício de recursos econômica e socialmente relevantes. Havendo possibilidade de evitar o prejuízo por meio de esforços razoáveis, a conduta socialmente esperada do homem probo é que aja de forma a que tais danos não ocorram. Se, no entanto, o credor viola tal norma imposta pela boa-fé e posteriormente pretende obter reparação pelos danos sofridos, o exercício ao seu direito à indenização é abusivo, pois excede manifestamente os limites traçados pela boa-fé” (LOPES, Christian Sahb Batista. A mitigação dos prejuízos no direito contratual. 2011. Belo Horizonte: UFMG – Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG para a obtenção do grau de Doutor em Direito – p. 158 ).

Ao não aceitar uma nova unidade de carga, em ótimo estado, idêntica àquela que está presa na Alfândega (não por culpa do importador), e ao agir dessa maneira, o armador contribui para o agravamento do dano, o que não se pode admitir.

Desta forma, o armador não poderá ser indenizado pelos danos decorrentes do inadimplemento que pudessem ter sido evitados ou reduzidos com o emprego de medidas ou esforços razoáveis de sua parte.

Se a indenização pela utilização de contêineres além do prazo de utilização livre pactuado serve para reparar o armador pelo período em que, consequentemente, deixou de explorar comercialmente a referida unidade de carga, é evidente o rompimento do nexo causal entre o dano e seu causador (importador/consignatário), a partir do momento em que o armador se recusa a unidade de carga sob o argumento da ausência de pagamento da referida indenização.

A lei dispõe sobre formas de garantir a dívida, não se incluindo a hipótese de condicionamento do cumprimento de uma obrigação que pode ser impossível (devolver o mesmo contêiner) ao devedor e viola a ordem natural dos atos. 

Desta forma, o pedido de liminar na aludida ação será para que o juízo consigne o valor devido de demurrage até a data em que o armador recusou-se a responder a notificação ou, quiçá, a data de ajuizamento da ação consignatória.

Nesse contexto, de rigor deverão ser reconhecidas: (i) a configuração da mora accipiens, decorrente da abusividade na recusa ao recebimento dos contêineres; (ii) a responsabilidade do armador por essa abusividade; (iii) a consequente delimitação da incidência da demurrage à data da primeira tentativa de devolução, a partir de quando ficou configurada a mora accipiens. 

Na mesma tutela pedida (liminar), deve-se pedir que o juízo defira a entrega do novo contêiner (agora comprador pelo importador) no mercado local, intimando-se o armador (oré réu/ré) para que indique o local de entrega, com despesas de transporte pelo importador, como ato de boa fé. Não se afaste a possibilidade de depositar em juízo o valor da demurrage que calcularmos como correto.

Assim sendo, terá o armador novo contêiner para poder explorar sua atividade comercial.

Em síntese, são as etapas:

1 – notificar o armador

2 – ajuizar ação

3 – concedida a liminar, comprar o contêiner certificado

4 – entregar o contêiner no local indicado.

5 – sentença confirmando a liminar e fixando o valor da demurrage

Desembaraçada a carga, a nova unidade será de propriedade do importador, que poderá revendê-lo ao vendedor do contêiner, abatendo seu prejuízo.

E, finalmente, havendo a ação de consignação, o valor de demurrage já será objeto da discussão, impedindo ajuizamento de ação de cobrança pelo armador contra o importador, fazendo coisa julgada.

Demurrage – Cortando o mal pela raiz