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No mês passado (09.07.19), foi publicado o Ajuste Sinief nº 08/2019 que, em síntese, aumentou os poderes de fiscalização das Administrações Tributárias dos Estados-membros da federação, assegurando-se a elas, a partir de 1º de janeiro de 2020, o “acesso irrestrito às informações contidas na EFD ICMS IPI, independentemente do local da operação ou da prestação relativo ao ICMS”.
Ou seja: todas as informações que constam no Sped fiscal, de todos os contribuintes, onde quer que estejam estabelecidos, serão objeto de análise de todos os Fiscos estaduais, inaugurando-se uma nova Era de transparência fiscal no Sped.
Rigorosamente, não era inesperado esse movimento adotado pelo Confaz. A partir do momento em que todos os Estados efetivamente aderissem ao Sistema Público de Escrituração Digital (Sped) – inclusive Pernambuco, última unidade federada a adotar a EFD ICMS IPI, finalizará sua implementação até outubro deste ano de acordo com o cronograma publicado no Decreto n° 46.431/18 –, era previsível que as Administrações Tributárias não se contentariam apenas com as informações fornecidas pelos seus próprios contribuinte, mas igualmente buscassem garantir o acesso pleno as informações que constam na base de dados do Sped fiscal. Afinal, na “Era da Informação”, vale mais do que nunca o já conhecido ditado: “informação é poder”.
No entanto, essa ampla transparência buscada pelas Administrações Tributárias exige que se superem alguns desafios, nem um pouco singelos.
De imediato se poderia levantar a ausência de fundamento no direito positivo para que haja esse irrestrito compartilhamento de informações, mesmo entre os Estados.
O Ajuste Sinief nº 08/2019 tem como fundamento a cláusula décima quarta do Convênio ICMS 190/17, que prevê a possibilidade de as unidades federadas permitirem, mediante mútuo acordo, “o acesso irrestrito às informações constantes dos documentos fiscais eletrônicos emitidos e da escrituração fiscal digital dos contribuintes”. Referido convênio, por sua vez, tem como fundamento legal o art. 199 do Código Tributário Nacional que dispõe ser possível a assistência mútua entre Administrações Tributárias para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, desde que na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio.
Mas se o ajuste Sinief tem fundamento em convênio, que por sua vez possui fundamento no CTN, qual seria, então, o problema nessa cadeia de positivação?
Simples: embora o Ajuste Sinief nº 08/2019 tenha seguido a forma prevista no CTN, o compartilhamento de informações, não observou os limites materiais para que um determinado ente tributante tenha acesso às informações fiscais, que estão previsto no art. 113, § 2º do CTN: o interesse da arrecadação e da fiscalização.
Como tenho insistido em meu livro “Deveres instrumentais dos contribuintes: Fundamentos e limites” (2017), o legislador, diferentemente do que ocorre em outros países, trilhou um caminho bastante peculiar no tratamento conferido pelo regime jurídico das obrigações acessórias, positivando no art. 113, § 2º do Código Tributário Nacional regra específica, pela qual condiciona a instituição daqueles deveres ao “interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos”, atuando como um contrapeso a uma maior margem de discricionariedade formal que concedeu à Administração Pública para o exercício de seu poder de fiscalização e de exigir obrigações acessórias dos contribuintes.
O “interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos” não se confunde com o interesse subjetivo do Poder Público, pois, se assim fosse, sempre haveria interesse por parte de quem instituiu a obrigação acessória, por mais absurda que seja, não havendo limite efetivo algum.
Pressupõe, antes, a convergência do interesse do Estado em assegurar o cumprimento das obrigações tributárias, garantindo-lhe meios financeiros para custear as suas finalidades; o interesse da coletividade no bom funcionamento de um sistema tributário justo e eficiente, que distribua equitativamente a carga tributária entre todos, sob o menor custo possível; e o interesse do próprio contribuinte de ser tributado em consideração à sua capacidade contributiva ou segundo outros critérios de igualdade relevantes, aplicáveis para o tributo cobrado. Se assim é, somente se verifica o “interesse da arrecadação ou da fiscalização” na medida em que as obrigações acessórias se revelem imprescindíveis, seja para assegurar o cumprimento da obrigação tributária principal, seja para atestar a inexistência do tributo nos casos de imunidade, isenção e não incidência.
Portanto, cabe questionar qual seria o interesse de um Estado em obter informações de (i) uma pessoa que não é contribuinte em seu estado; (ii) que praticou uma operação que ocorreu fora de suas fronteiras e, portanto, um fato gerador fora de seu alcance; (iii) e gerou um débito tributário que não lhe pertence?
O raciocínio que poderia ser oposto seria no sentido de que a informação, embora não relacionada com nenhum interesse em vista no momento do compartilhamento, poderia vir a se tornar relevante no caso em que, após a sua análise, a Administração Tributária constatar que havia algum debito tributário ou prática de ilícito por parte do contribuinte.
O argumento, posto sedutor, não convence. Novamente, é no art. 113, §2º do CTN em que se constata a impossibilidade do “fishing expedition” (i.e., da obtenção de informações desprovidas de causa para se buscar, posteriormente, uma finalidade naquela exigência), ao haver expressamente o condicionamento da exigência das obrigações acessórias a um interesse, seja da arrecadação ou da fiscalização. Se esse interesse se releva apenas após a obtenção da informação, é porque ele não existia no momento em que a informação foi obtida, comprometendo-se, assim, a própria validade da obrigação acessória. Questionavelmente haveria fundamentos para se mitigar o direito do contribuinte ao sigilo e à proteção de seus dados fiscais, abrindo a informação para terceiros – ainda que outras administrações tributárias – que nenhum interesse objetivo teria naquela informação.
Outro argumento que poderia ser levantado seria no sentido de que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (Lei nº 13.709/18) determina, em seu art. 7º, que o manejo das informações pessoais pela administração pública deve ter como finalidade “o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres”.
A leitura apressada deste dispositivo poderia sugerir que bastaria a criação de lei ordinária, instituindo uma política de fiscalização holística e mais austera, que se justificaria o acesso irrestrito às informações de contribuintes e operações situados para além dos territórios das unidades federadas.
Entretanto, há de se observar que o fundamento da fiscalização tributária encontra-se no art. 145, §1º da CF/88, que, de um lado, confere poderes à Fiscalização exercer as medidas necessárias para identificar o patrimônio, rendimentos e atividades econômicas do contribuinte, e, de outro, impõe que este poder seja exercido visando a uma finalidade específica, i.e., garantir que a tributação seja em respeito à capacidade contributiva. Assim, é questionável se informações que dizem respeito a não-contribuintes, referente a operações praticadas em outros territórios, pode auxiliar em alguma medida um Estado a tributar seus contribuintes de forma mais consentânea com tal finalidade.
Não é apenas quanto à validade do compartilhamento automático de informações que exsurgem preocupações. Igualmente sensível é a ausência de garantias de uma adequada proteção da informação e do direito à privacidade do contribuinte.
A começar, não há notícias de que houve qualquer investimento na infraestrutura das secretarias de fazenda das diversas unidades da federação, garantindo a inviolabilidade de seus sistemas informatizados (aprimoramento de firewall, restrição de acessos, criptografia etc.). Se teve, não houve divulgação. Igualmente nebulosos são os critérios de acesso à informação (quais setores, qual a credencial necessária etc.), de uso da informação (i.e., em quais situações as informações poderão ser utilizadas) e da responsabilidade pelo uso indevido ou vazamento de informação fiscal relevante (haverá a responsabilização do Estado e do agente público pelo dano tributário causado?).
Com efeito, na EFD ICMS IPI constam informações sensíveis dos contribuintes e, por vezes, sigilosas. Emblemático é o Registro 0210, no qual o contribuinte deve informar “Consumo Específico Padronizado”. Tais informações são tão relevantes que a obrigatoriedade desse registro não é obrigatória na maior parte das unidades federadas (como, por exemplo, em São Paulo houve a dispensa pela Portaria CAT nº 7/2018) e tem sido questionada judicialmente pelos contribuintes. Outras informações sensíveis, tais como fornecedores, valor dos insumos, detalhes da produção industrial, receita de vendas dos estabelecimentos dos contribuintes, principal adquirente, mercado consumidor, regimes especiais gozados etc., igualmente ficam à disposição de qualquer um que tenha acesso às informações do Sped fiscal.
Por fim, desnecessário dizer que a ausência de uma política clara e transparente a respeito do uso de tais informações acabam por afastar o contribuinte e o Fisco da tão desejada aprimorada relação de confiança que se busca com programas inclusivos, como programas de conformidade tributária. Afinal, de onde florescerá a confiança, se as intenções da outra parte na relação não são claras ou transparentes?
Não se ignora, aqui, que a LGPD traz algumas diretrizes a serem observadas pelo Poder Público, inclusive, no que se refere à obtenção de dados e à sua proteção, que, de alguma forma, podem contribuir, pelo menos, para melhorar o nível de transparência por parte da Fiscalização.
Em seu art. 9º, há a obrigação de que o detentor dos dados pessoais de um cidadão deva disponibilizar “de forma clara, adequada e ostensiva” informações quanto a (i) finalidade específica do tratamento; (ii) forma e duração do tratamento, observados os segredos comercial e industrial; (iii) identificação do controlador; (iv) informações de contato do controlador; (v) informações acerca do uso compartilhado de dados pelo controlador e a finalidade; (vi) responsabilidades dos agentes que realizarão o tratamento; e (vii) direitos do titular.
Assim, se superada a duvidosa compatibilidade do Ajuste Sinief nº 08/2019 com o art. 113, §2º do CTN, seria requisito imprescindível para a sua validade a estrita observância de tais diretrizes.
Tal comando é enfatizado, novamente, pelo art. 23 da LGPD, que impõe o fornecimento, pela Administração Pública, de “informações claras e atualizadas sobre a previsão legal, a finalidade, os procedimentos e as práticas utilizadas para a execução dessas atividades”. Portanto, o compartilhamento automático e irrestrito da informação – a partir de janeiro de 2020 – deverá ser acompanhado de ato normativo, por todas as Unidades Federadas individualmente, que disponha de forma clara a finalidade e as práticas que serão utilizadas no tratamento das informações pessoais dos contribuintes que forem obtidas dessa forma.
Em síntese: que a transparência fiscal deve ser buscada para evitar sonegação, permitir uma fiscalização mais eficiente no âmbito interno, perante todas as Administrações Tributária, e, inclusive, combater o fenômeno que internacionalmente se conhece como erosão da base tributável e transferência de resultados (BEPS), e, assim, proteger a arrecadação dos Estados e permitir a sua manutenção, disto não há a menor dúvida. Contudo, por mais nobres que sejam seus objetivos, não deve ser promovida a qualquer custo. E, fundamentalmente, que essa nova Era de transparência fiscal não seja marcada pela unilateralidade.